
Artigo publicado no site do CONJUR:
Comprovação do dolo específico em acumulação ilícita de cargos
5 de dezembro de 2024, 11h21
Por Wilson Judice Maria Neto, Yuri Fernandes
A improbidade administrativa, regulada inicialmente pela Lei nº 8.429/92, foi redesenhada pela Lei nº 14.230/21, que buscou alinhar o regime sancionador administrativo aos princípios da proporcionalidade, segurança jurídica e razoabilidade. Essa reforma tem implicações significativas, especialmente na eliminação da modalidade culposa e na exigência de dolo específico, exigindo maior rigor na configuração de atos ímprobos.
No âmbito jurisprudencial, o STF consolidou esse entendimento no Tema Repetitivo nº 1.199 e na Reclamação nº 73.619, ressaltando a necessidade de subsunção das condutas aos tipos legais de forma estrita. Este artigo explora essas mudanças e suas repercussões práticas, com base em um caso concreto que evidencia o uso de processos administrativos como instrumento de perseguição política.
Dolo específico e taxatividade: avanços legislativos e jurisprudenciais
Dolo específico como requisito essencial
A reforma de 2021 introduziu a exigência de dolo específico para configuração de improbidade administrativa. O artigo 1º, § 2º, define dolo como a intenção consciente de alcançar um resultado ilícito, eliminando a responsabilidade objetiva e a punição por atos culposos. Esse entendimento foi reforçado pelo STF no ARE 843.989/PR (Tema 1.199), de relatoria do ministro Alexandre de Moraes, que afirmou:
“A Lei 14.230/2021 exige a presença do elemento subjetivo – dolo – para a tipificação dos atos de improbidade administrativa, vedando qualquer interpretação que permita a responsabilidade objetiva ou culposa.”
A distinção entre dolo genérico e dolo específico é fundamental. O dolo genérico refere-se à prática de um ato ilícito, enquanto o dolo específico exige uma intenção deliberada de alcançar um objetivo ilícito. Como destaca Rafael Carvalho Rezende Oliveira, “a exigência de dolo específico eleva o padrão probatório, exigindo maior rigor na demonstração da intenção do agente público” (Curso de Direito Administrativo, 2022).
Taxatividade das condutas ímprobas
Os artigos 9, 10 e 11 da LIA passaram a ser interpretados como taxativos, exigindo que as condutas se adequem estritamente aos tipos legais. Essa taxatividade limita a margem interpretativa e reforça a segurança jurídica. No entanto, como observa Diógenes Gasparini, “a rigidez dos tipos legais pode gerar lacunas na proteção ao patrimônio público, exigindo regulamentação complementar para evitar impunidades indesejadas” (Direito Administrativo: Reflexões Contemporâneas, 2022).
Estudo de caso: lawfare e desequilíbrio processual
O caso analisado
O caso concreto envolve um servidor público federal cedido a um município, que foi acusado de acumulação ilícita de cargos após identificar irregularidades no âmbito da Procuradoria Geral do Município (PGM). Apesar de o servidor ter confiado na regularidade de sua cessão, a publicação tardia no Diário Oficial levou à instauração de um processo administrativo disciplinar (PAD), marcado por perseguição institucional e evidente lawfare.
Desequilíbrio processual e ônus da prova
Esse caso ilustra o desequilíbrio processual em ações de improbidade, em que o Ministério Público e as Procuradorias dispõem de amplos poderes de requisição. O artigo 373, inciso I, do CPC/15, atribui ao autor o ônus de provar os fatos constitutivos de seu direito, exigindo que o MP ou a Procuradoria demonstrem inequivocamente a prática do ato e o dolo específico do agente.
Como sustenta Lenio Streck, “o desequilíbrio processual em ações sancionatórias pode resultar em abuso de poder processual, especialmente quando as prerrogativas institucionais são utilizadas de forma desproporcional contra os acusados” (Hermenêutica e Direito: Para Além do Positivismo Jurídico, 2021).
Comparação internacional e reflexões normativas
Estados Unidos e União Europeia
Nos Estados Unidos, o False Claims Act exige dolo específico em ações de fraude contra o governo, estabelecendo um padrão probatório elevado. Na União Europeia, as diretrizes de integridade administrativa reforçam a necessidade de provas robustas para responsabilização, alinhando-se ao modelo brasileiro reformado.
Lacunas normativas e propostas
A rigidez dos tipos legais impõe desafios interpretativos. Regulamentações adicionais, como súmulas vinculantes ou diretrizes interpretativas, podem auxiliar na aplicação uniforme da LIA, evitando lacunas prejudiciais à proteção do patrimônio público.
Conclusão
A reforma da Lei de Improbidade Administrativa e os entendimentos do STF no Tema 1.199 e na Reclamação nº 73.619 consolidaram avanços significativos no Direito Administrativo Sancionador, ao exigir dolo específico e reforçar a taxatividade das condutas ímprobas. Contudo, os desafios práticos, como desequilíbrios processuais e lacunas normativas, ainda demandam atenção.
No caso analisado, a ausência de dolo específico e o uso do PAD como instrumento de perseguição institucional reforçam a necessidade de extinção do processo ou improcedência da ação, em consonância com os princípios da segurança jurídica e da presunção de inocência. A aplicação rigorosa do artigo 373, inciso I, do CPC/15, é fundamental para equilibrar as relações processuais e assegurar justiça material.
Referências bibliográficas
BARROSO, Luís Roberto; MUDROVITSCH, Rodrigo. Direito Constitucional e Administrativo Sancionador: Teoria e Prática. São Paulo: Saraiva, 2020.
Código de Processo Civil, Lei n.º 13.105/2015. Art. 373, inciso I.
GARCIA, Emerson; ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade Administrativa. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo: Reflexões Contemporâneas. São Paulo: Saraiva, 2022.
NEVES, Daniel Amorim Assumpção; OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Improbidade Administrativa: Direito Material e Processual. Grupo GEN, 2022.
OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de Direito Administrativo. 12ª ed. São Paulo: Método, 2022.
STRECK, Lênio. Hermenêutica e Direito: Para Além do Positivismo Jurídico. São Paulo: RT, 2021.
Supremo Tribunal Federal. Reclamação nº 73.619. Rel. min. Gilmar Mendes, 2024.
Supremo Tribunal Federal. ARE 843.989/PR. Rel. min. Alexandre de Moraes, Tema 1199, 2022.