NINGUÉM NESTA TERRA É REPUBLICO?

 

MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO é advogado, professor titular aposentado de Direito Constitucional e ex-diretor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo; é doutor em Direito pela Universidade de Paris e doutor Honoris Causa da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Foi professor visitante da Faculdade de Direito de Aix-en-Provence e é presidente da Associação Brasileira dos Constitucionalistas (Instituto Pimenta Bueno), além de ex-vice-governador do estado de São Paulo.

 

LINK DO ARTIGO NO CONJUR

https://www.conjur.com.br/2024-dez-15/ninguem-nesta-terra-e-republico/

NOSSA PALAVRA

Trazemos a seguir belo artigo do professor Manoel Gonçalves Ferreira Filho, publicado no site CONJUR, conforme o link acima. Ler o artigo provoca reflexão obrigatória sobre o trato da coisa pública no nosso país. Eu, como administratista e especializado em direito público, entendo bem esta realidade invocada pelo professor Manoel. Por isso, penso que devemos propagar estas ideias aqui traçadas para alcançar os agentes públicos e desafiar o espírito republicano.

 

O ARTIGO DO PROFESSOR MANOEL

Há quase quatro séculos um frade baiano, Frei Vicente do Salvador, escreveu uma história do Brasil que abrange o período 1500-1627.

Nela, há uma passagem, certamente pessimista, que muitos conhecem e alguns a citam. Diz ele num momento certamente depressivo:

“Nem um homem nesta terra é republico nem zela ou trata do bem comum, senão cada um do bem particular”. [1]

“As casas dos ricos… estão providas de todo o necessário”, mas “o que é de fontes, pontes, caminhos e outras coisas públicas é uma piedade, porque, atendo-se uns aos outros nenhum a faz, ainda que bebam água suja e se molhem ao passar dos rios ou se orvalhem pelos caminhos…”

O texto já é uma denúncia da desigualdade no país, o que tantos ainda hoje verberam e que parece longe de ser, não digo eliminada, pois isto é utópico, mas atenuada na medida do possível.

É também uma advertência de que os interesses comuns da comunidade não são preocupação de ninguém, pois cada um cuida dos seus interesses e ninguém do interesse geral.

Falava ele isto num livro de 1627, está isto mudado em dezembro de 2024?

Há razões para negá-lo.

Com efeito, o nosso Executivo mais se preocupa com o impacto nas perspectivas eleitorais de seu chefe e o partido deste, do que com o equilíbrio financeiro do país que gasta mais do que pode.

O nosso Legislativo parece mais ávido pelo pagamento das emendas ao orçamento feitas por seus membros do que pelo interesse geral na segurança, no desenvolvimento, na defesa da Constituição do povo brasileiro.

O nosso Judiciário se mostra pouco interessado na segurança jurídica. Tem um tribunal que interpreta leis como bem lhe parece, contrariando a letra e o espírito do que dispõe o ordenamento jurídico e particularmente a Constituição. Não respeita liberdade de expressão, impondo censura, julga sem respeito ao devido processo legal. Pior, às vezes fecha os olhos para a corrupção comprovada e beneficia, com pretextos jurídicos, corruptos confessos.

Além disto, todos os privilegiados do serviço público defendem, com unhas e dentes, as suas vantagens, que querem ainda aumentar. Nisto, imitam, ou são imitados por homens (e mulheres) de negócios que garantem os seus lucros com benesses estatais, em ambos os casos em detrimento do povo que paga impostos.

A arte de furtar

Nada disto surpreende quem leu outra obra clássica, atribuída às vezes a Vieira, “A arte de furtar”. [2] Esta obra anônima também do século 16 — denuncia autoridades do período colonial brasileiro que não se preocupavam com o interesse geral, mas apenas com o que lhes rendia ou a seus apaniguados, nunca com o que convinha a todos. (Um maldoso poderia nisto se lembrar de eleitos que se aproveitam de seu poder, em favor de si próprios ou de seus amigos consociados, ou dirigem as obras ou o dinheiro público — em quantias fabulosas — para ganhar apoio e simpatia de sua clientela ou de sua vizinhança).

Ademais essas autoridades não exigiam o cumprimento das leis por todos, mas levavam em conta a pessoa do infrator. [3] E as “leis” muitas vezes não eram as normas inscritas nas Ordenações, mas a que o julgador inventava, segundo sua visão pessoal, quiçá personalíssima, do justo.

E, não existindo na época uma imprensa imparcial, a versão dos fatos que o povo recebia e com que havia de balizar suas opções, era, não a verdade objetiva, mas aquilo que interessava ou com que simpatiza os que faziam a opinião pública.

Igualmente, os intelectuais da época — os clérigos — martelavam o espírito dos crentes, com as verdades da moda, no caso as das igrejas.

Tudo isto demonstra que tanto Frei Vicente como o autor da Arte de Furtar antecipam a lição de um francês célebre, chamado Montesquieu. Este aponta que a natureza de um sistema (ele escrevia sobre sistemas de governo, ou as caraterísticas traçadas na constituição) não teriam valia se concomitantemente não prevalecesse um “princípio” — uma maneira agir — que desse vida às regras escritas. Deveria este prevalecer na comunidade governada, seja entre a elite que governa e a base que a elege. E haveria de ser infundido pela educação. Está isto no Espírito das Leis, Livros II e III.

O princípio da democracia exige que o povo seja republico, eleja para a governança quem seja republico, afora terem amor à pátria, amor às leis, à igualdade e outras banalidades que ainda são elogiadas, mas na vida de todos os dias parecem estar mortas. Ou serem retrógradas.

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[1] Frei Vicente do Salvador, História do Brasil, publicado em 1627, consultado na 5ª edição, Melhoramentos, São Paulo, 1965, p. 59.

[2] Lido na edição da Melhoramentos, São Paulo, em 1951.

[3] É a origem da famosa advertência dirigida a servidores rigorosos: “Sabe com quem está falando”.

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